terça-feira, 11 de agosto de 2009

A moagem

Aproximando o aniversário de minha cidade, Caculé, presto-lhe mais uma homenagem, afinal são 90 anos de história. Hoje trago-lhes uma reportagem dos anos 70 que fala um pouco sobre os engenhos que produziam rapadura, atividade bastante difundida em meu município naquela época. Este texto tem um gostinho especial para mim pois Antônio Batista de Souza, o personagem desta narração, é nada mais nada menos que meu bisavô. Este post é também em homenagem á ele, o inesquecível Nem da Passagem do rio. Vamos á reportagem:


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CENA BRASILEIRA: Sertão da Bahia, homens que vivem das rapaduras.
Por: José Afonso Primo.



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A moagem

À meia-noite, antes do galo “miudar”, toda a família de Antônio Batista de Souza já está de pé. Cada um com sua tarefa: enquanto a mulher e a filha cuidam da casa e começam a preparar a primeira refeição - um pouco de café com bolo ou beiju de tapioca - os dois homens e o garoto se dirigem para o engenho, onde atrelam os bois para iniciar a moagem. Cai uma chuva fina, mas eles não se preocupam com agasalhos.
Um pouco mais e o ranger do engenho em movimento quebra o silencio da noite. Não se ouve mais nada. Só o gemido das moendas amassando a cana e o grito fino do garoto tocando os bois: “Brioso! Jeitoso!”. E o feixe de cana chanfrada é passado e repassado até virar bagaço. Homens e mulheres se ocupam em armazenar a garapa para dar inicio a segunda etapa da moagem, ou seja, fabricação da rapadura, logo ao amanhecer. Trabalham silenciosamente. Nem precisam se falar porque todos já sabem o que fazer.
Dia clareando, Dino, o garoto de 10 anos1 que acompanhou durante toda a madrugada o ritmo de trabalho dos adultos, não se queixa. Passou a maior parte do tempo escanchado na manjarra do engenho com a atenção voltada apenas para os bois. É sua parte na moagem.
Desde os 6 anos de idade, o garoto Dino ajuda na moagem, tocando os bois ou mesmo trabalhando como moedor. Quando começou, de tão pequeno, seu pai colocava um caixão ao lado do engenho para que ele alcançasse as moendas, corpo frágil, mãos miúdas, ia introduzindo a cana com dificuldade.
A garapa vai escorrendo. Primeiro, pelo cocho instalado sob o engenho e depois de uma canaleta subterrânea, até a cobertura onde estão os demais equipamentos: um recipiente para armazenar o caldo de cana, duas fornalhas onde se encontram os tachos de cobre e as fôrmas que deverão completar o processo de fabricação de rapadura.
Ao ser despejada nos tachos, a garapa é observada e mexida com uma concha para não subir e derramar em virtude da alta temperatura. Vai se transformando em melado, até atingir um estágio de concentração que já pode ser colocado nas formas. Após o resfriamento, a rapadura está pronta para o consumo.
No engenho de “seu” Antônio, essa operação se repete há mais de 50 anos. Primeiro, foram os seus avós, depois seus pais e agora ele. Como aqui, em Caculé, plena caatinga, a meio caminho entre Vitória da Conquista, na estrada Rio-Bahia e Bom Jesus da Lapa, no rio São Francisco, existem milhares de pequenos proprietários que fazem rapadura por esse processo artesanal, no alto sertão nordestino.
“Seu” Antônio Batista continua moendo cana e fazendo rapadura, quase por hábito, pela lembrança “dos bons tempos, quando a moagem era uma festa e toda a vizinhança vinha ajudar, a criançada bebendo garapa, comendo melado e “puxa” (rapadura ainda quente, antes de ser despejada na forma). Também é para aproveitar a terrinha que tem na beira do rio. Setenta anos, magro e alto, fala pausadamente das dificuldades:
“Dá mais não “sinhô” a gente começa a trabalhar à meia-noite, as cinco pessoas da família. No fim do dia tem uma carga e meia de rapadura (75 unidades) para vender por Cr$ 150,00 no atacado [...].”.
Fim de tarde, a tarefa diária já está cumprida. O jantar é servido às 4 horas da tarde: feijão, arroz, um pouco de carne seca e um picadinho de maxixe. Durante o tempo da moagem é sempre assim. Dormem menos do que o habitual. Às 6 horas da tarde já não se vê ninguém de pé. O silêncio volta ao sítio BelaVista, na passagem do rio, Caculé-Ba.




1. O garoto Dino está hoje com aproximadamente 45 anos, isto dá pra dar uma situada no tempo em que foi feita esta reportagem, por volta dos anos 70.


3 comentários:

  1. Mó legal essa reportagem, mostra como era a mão de obra antigamente, Trabalho muito mais arduo do que os de hoje em dia.

    Abração !

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  2. é isso aí W!

    viagei nesta reportagem, embora ser antiga ainda existe essa "forma artesanal" de fazer as coisas! Eu msm ja fiz rapadura assim, lá no engenho de meu avó. beber garapinha na hora.. hm delicia.. tempos bons! lembrei-me tbm das casas de farinha, ja ralei muita mandioca.. KKKKk... e vc tbm! Mas era só aventura msm, ñ por trabalho como muitas familias do sertão nordestino!
    beijO

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  3. Nos anos 70 eu era uma adolescente que nem imaginava que alguns anos depois eu conheceria a terra da qual meus pais se orgulhavam tanto, minha mãe para ser mais precisa, pois meu pai já estava com Deus havia alguns anos. Mas minha mãe contava histórias como essa, só que com outros personagens, e nas décadas de 40 e 50.Não vi, mas de tudo eu tinha a noção de como era.Parabéns meu jovem, através de vc, sei que mesmo à distância, conheço cada vez mais esta abençoada cidade.

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